Filme-Lunana: A felicidade das pequenas coisas

O filme “Lunana: A Yak in the Classroom” (A Felicidade das Pequenas Coisas), lançado em 2019 e dirigido por Pawo Choyning Dorji, recebeu indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022.

O Butão faz fronteira com China e Índia

A história se passa no vilarejo de Lunana, um pequeno e isolado povoado com cerca de 50 habitantes, situado em uma das regiões mais remotas do Butão – um belíssimo país nos Himalaias.

O Butão está localizado no sul da Ásia, fazendo fronteira com a China e a Índia, e está geograficamente próximo do Nepal e de Bangladesh. Sua capital é Thimphu.

Chegar a Lunana exige uma longa caminhada de aproximadamente seis dias pelas montanhas, partindo da cidade mais próxima, Gasa. A eletricidade é limitada, os aparelhos eletrônicos funcionam de forma precária, e o estilo de vida é bastante simples, distante dos confortos e da modernidade das áreas urbanas.

O protagonista é Ugyen, um jovem professor em fase final de formação acadêmica que não se sente realizado na profissão. Insatisfeito, ele decide abandonar o magistério – até ser enviado para lecionar justamente em Lunana, onde sua jornada ganha um novo sentido.

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O grande sonho de Ugyen é tornar-se músico e conquistar um visto para viver na Austrália e investir em sua carreira artística. No entanto, antes disso, ele precisa cumprir uma exigência do governo do Butão: concluir seu último ano de serviço obrigatório como professor, sendo designado para a escola mais remota do país, localizada no vilarejo de Lunana.

Relutante, ele aceita a missão, sem entusiasmo, e não faz questão de esconder seu descontentamento. Durante a longa e árdua caminhada até Lunana, e mesmo nos primeiros dias em que ali permanece, Ugyen se mostra arrogante, distante e indiferente ao modo de vida local.

Mas é justamente nesse contraste que começa sua transformação. Mesmo diante de sua frieza e orgulho, os moradores de Lunana o recebem com gentileza, respeito, simplicidade e uma alegria genuína. Para aquela pequena comunidade, Ugyen representa esperança,  especialmente para as crianças, que anseiam por aprender.

À medida que se deixa tocar pela beleza singela do vilarejo e pela força das relações humanas que ali florescem, o professor começa a enxergar a vida com outros olhos. A convivência entre ele e os moradores se transforma em uma troca profunda de experiências e visões de mundo.

Quando finalmente se entrega à missão de ensinar, Ugyen não apenas transforma a realidade à sua volta, ele também se transforma. E, nesse processo, o filme nos convida a refletir sobre o que realmente significa felicidade, propósito e pertencimento.

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O que aprendemos junto com o professor nessa jornada?

Ao longo de sua estadia em Lunana, o professor passou de um visitante relutante a um verdadeiro membro da comunidade. Ele se fez presente de corpo e alma, entregando-se à experiência com simplicidade e verdade. 

Um dos elementos que mais facilitaram essa transformação foi a ausência de tecnologia. A desconexão do celular e do mundo virtual permitiu que ele despertasse seus sentidos e abrisse o coração para o que realmente importava.

Com os poucos recursos disponíveis, ele se dedicou a fazer o melhor. Esforçou-se para tornar a sala de aula um espaço mais acolhedor e digno para as crianças, com criatividade, empenho e cooperação coletiva. Seu trabalho tornou-se um esforço compartilhado, impulsionado pelo envolvimento espontâneo de todos os moradores.

Demonstrou profundo respeito pela cultura local, interessado em aprender os costumes, as canções, as tradições e até as brincadeiras das crianças, sempre com escuta atenta, humildade e curiosidade genuína.

Mais do que ensinar, ele compartilhou generosamente o que tinha: seu conhecimento, seus dons, seu tempo e até o próprio conforto. Um gesto simbólico foi quando cedeu os papéis de sua janela, que o protegiam do frio, para ajudar os outros.

E o que ele recebeu?

Foi acolhido com carinho, honra e respeito. Sua chegada foi celebrada com entusiasmo, e sua presença como professor foi valorizada desde o primeiro momento, não apenas como alguém que ensina, mas como alguém que inspira esperança.

Recebeu o privilégio de contemplar a alegria nas pequenas coisas: viu as crianças se encantarem com brinquedos improvisados, descobriu a beleza da infância vivida com liberdade, longe dos excessos e estímulos da modernidade, em plena comunhão com a natureza.

Aprendeu que o verdadeiro ensino não depende de recursos sofisticados, mas de intenção, presença e vontade mútua. Quando há desejo genuíno de ensinar e aprender, é possível transformar até os espaços mais simples em lugares de sabedoria e crescimento.

A felicidade que o professor experimentou superou até seus maiores sonhos e planos para o futuro. Ao se abrir à generosidade daquela comunidade, descobriu a profunda satisfação que habita nas coisas mais simples.

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Recebeu o melhor que podiam oferecer: partilhou refeições em uma tigela de forte simbolismo; foi presenteado com um iaque – animal querido, parte do rebanho e da família; aprendeu uma canção de valor imaterial imenso para os moradores; absorveu saberes tradicionais preciosos; e desfrutou do máximo de conforto que aquele vilarejo humilde podia proporcionar.

Foi acolhido com pessoalidade e afeto, não era apenas mais um, mas alguém especial, reconhecido como alguém com o “poder de tocar o futuro”, um portador de saberes valiosos a compartilhar.

Foi honrado e respeitado não apenas pelo que sabia, mas por aquilo que representava.

E, talvez o mais transformador: acreditaram nele. E quando alguém acredita em nós, especialmente quando nem nós mesmos conseguimos acreditar, ganhamos uma força silenciosa e poderosa para seguir com nossa missão e propósito.

Recebeu o presente do silêncio, da conexão consigo mesmo, com sua história e com a natureza. Foi um reencontro com sua inteireza, iniciado ainda no caminho desafiador pelas montanhas, em um verdadeiro retiro que começou antes mesmo de chegar ao povoado.

Teve a oportunidade de estar em um lugar de beleza quase irreal, uma paisagem que parecia pintura viva, suspensa no tempo. Ali, viveu a leveza da contemplação e a riqueza de um cotidiano sem as interferências da modernidade.

Ele conheceu, de forma tocante, o poder da gratidão. Quando se doa o pouco que se tem, e recebe em troca uma gratidão tão pura, tão simples e profunda, não há como não se comover. Essa gratidão constrange, ensina, encanta e transforma.

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O professor recebeu o sorriso e o brilho no olhar das crianças, algo que valor nenhum no mundo poderia pagar. Teve a chance de tocar o futuro delas, de ser parte do primeiro passo em direção a sonhos tão puros, e de acreditar junto, com o mesmo entusiasmo infantil.

Foi acolhido como parte de uma verdadeira família. Sentiu o afeto de viver em comunidade, a segurança de ter um lugar no mundo, de ser respeitado, reconhecido e de exercer sua função social. 

Mais do que tudo, participou ativamente das mudanças que aquela gente sonhava para um futuro melhor. Ele experimentou, profundamente, o sentimento de pertencimento.

E afinal, que valor pode ser maior do que fazer parte de transformações reais? Do que contribuir com mudanças que ultrapassam o individual e se tornam causas coletivas? 

Estar a serviço de algo maior do que nós mesmos é talvez o sentido mais autêntico de viver.

Entrevista com o diretor Pawo Choyning Darji

Em 2023, o diretor Pawo Choyning Darji concedeu uma entrevista ao jornal Estadão. O conteúdo completo está disponível para assinantes, mas destaco aqui algumas de suas reflexões mais marcantes:

  • A importância do sentimento de pertencimento e da vivência em coletividade.
  • A felicidade que pode brotar das pequenas coisas da vida, para aqueles que têm o coração atento e aberto.
  • O poder de contar histórias — um aspecto central da cultura de seu povo. Segundo Pawo Cho, “contar uma história é desatar nós; as histórias devem unir, motivar o outro e libertar as pessoas e as coletividades.”

Pawo Choyning Darji, diretor do filme, comenta que embora o Butão seja frequentemente chamado de “o país mais feliz do mundo”, há um conflito silencioso entre tradição e modernidade. Muitos butaneses vivem essa dualidade, inclusive o professor protagonista, sentindo-se deslocados, como se a verdadeira felicidade estivesse distante, em terras modernas e urbanas, longe de casa.

O diretor reflete que o oposto da luz é a escuridão, e explica que Lunana significa “vale escuro”. Para ele, esse é o verdadeiro sentido do filme: “só quem conhece a escuridão pode entender e valorizar a luminosidade, a luz.”

A mensagem de pertencimento é tão poderosa que transforma o professor. Mesmo quando ele finalmente realiza seu sonho e viaja para a Austrália, durante uma apresentação musical ele canta a canção tradicional que aprendeu de sua amiga em Lunana. A música revela que, apesar da distância, ele permanece ligado àquela cultura. Ele pertence.

Pawo Choyning Darji conclui com uma verdade simples e profunda, que ressoa em todos nós:
“O desejo de ser feliz e a necessidade de pertencimento são universais — não importa o lugar.”

Imagem de Butão, tirada do Google Maps

Quantas lições preciosas este filme nos oferece!

A imensa gratidão pelo “pouco” recebido, pelo simples, pelo que é ofertado com o coração.

Talvez o professor tenha ganhado, em valor imaterial, muito mais do que ofereceu. E, ainda assim, é a comunidade, humilde, com recursos limitados, quem demonstra a maior gratidão. Um gesto que nos ensina sobre generosidade verdadeira.

Fica evidente que, em tantas culturas, com maior ou menor valorização, o professor e a educação carregam um poder transformador imenso. Mas sabemos também que, muitas vezes, esse mesmo professor está exausto, desanimado, prestes a abandonar sua missão. E é justamente aí que surgem alunos e realidades que inspiram, renovam, e devolvem sentido à sua jornada. Que o tocam, e, com ele, tocam o futuro.

Muito obrigada pela presença e pela partilha desse momento!

Observação: o filme Lunana: A Yak in the Classroom não está disponível no YouTube. Em março de 2024, consegui assisti-lo pelo aplicativo da Claro TV, mediante uma taxa de R$ 7,00. Após o pagamento, o conteúdo ficou disponível por 48 horas.

Conteúdo de Patrícia Natália, do Blog Natureza da Gente.

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