Na cozinha das casas mora o coração. Tem cheiro de broa e café no fogão. É abraço em forma de refeição, que nutre o corpo, constrói memórias e sustenta a tradição.
Natureza da Gente

Você já percebeu o que acontece dentro de você enquanto prepara um café, um chá, uma refeição?
O cheiro do café coado, do alho refogado, do bolo assado. A energia que surge do preparo, da degustação…
Essa não é uma conversa sobre nutrientes ou dietas. É um mergulho mais profundo: uma conversa sobre memória, identidade, afeto, sobre como nos conectamos com nossa história por meio dos alimentos.
Porque comer é muito mais do que se alimentar. É um ato social, cultural, afetivo.
É reencontrar nossas raízes em cada tempero. É abraçar a nossa história nas formas com que arrumamos a mesa.
Nossas preferências, a maneira como preparamos os pratos, como organizamos a mesa ou até como escolhemos onde comer: tudo isso carrega traços da nossa rotina, das nossas raízes, das pessoas que somos e das histórias que vivemos.
Toda vez que vamos à cozinha ou decidimos o que pedir em um restaurante, estamos fazendo escolhas. (Sem considerar aqui a questão do poder aquisitivo, nas diferenças socioeconômicas, mas somente quando se trata da possibilidade de escolhas).
Essas escolhas não são apenas baseadas no que precisamos comer, nutricionalmente, mas também no que queremos saborear. Nossos gostos revelam desejos, lembranças, conforto, identidade.
A cozinha, por exemplo, traz um grande simbolismo, especialmente para nós mineiros: é o coração da casa.
E a mesa, mesmo que pequena, mesmo que improvisada, é sempre um altar de encontros, onde partilhamos não só o pão, o arroz com feijão, mas também as histórias, os risos, o cuidado.
Nossos hábitos alimentares carregam o sabor da infância, da comida feita por nossos pais e avós, da merenda escolar, do bolo da vizinha, das festas simples mas cheias de presença. Há um mundo inteiro de memórias servido em cada prato.
Mas como chegamos a esse ponto em que passamos a engolir a comida como se fosse só combustível?
Esquecemos de mastigar devagar, de saborear, de agradecer, de sentir os sabores e os simbolismos.

Na correria do dia, as refeições viraram mais uma tarefa a ser cumprida. Mas a vida pede pausa. E o nosso corpo, alma e mente também.
É preciso recuperar a dignidade de se alimentar com presença. Nem sempre com festa, mas sempre com respeito.
Mesmo que seja só você à mesa: você merece o melhor momento.
Coloque uma toalha bonita, acenda uma vela se quiser, desligue as telas.
Crie o seu próprio momento de reverência ao alimento. Um ritual singelo, mas cheio de sentido.
Evite trazer à mesa o que adoece: fofocas, pressa, problemas. Deixe para depois da digestão.
Alimente-se com gratidão, com generosidade, com silêncio ou com conversas que aquecem o coração.
Reserve um lugar para a alegria, para o sabor, para a boa conversa ou reflexão. Mas não para o celular.
Sim, você merece uma refeição sem distrações, com calma e prazer.
Mastigar devagar, sentir o cheiro, elogiar o preparo, agradecer a quem cozinhou, mesmo que tenha sido você.
Porque comer é um gesto de vida. E a vida acontece nesses detalhes.
A comida é comunhão e ponte. Ela conecta gerações, culturas, afetos.
Ela guarda em si as marcas da infância, os encontros de amigos, as festas de aniversário, as ceias e os almoços de domingo. Ela guarda, também, saudades e dificuldades passadas ou presentes.
E apesar das dores, das privações, das lembranças difíceis, a cozinha permanece como lugar de cura e de reconstrução.
Na minha memória, tenho o cheiro das merendas da escola, a lembrança do pratinho esmaltado da casa da minha avó, com arroz, angu e um pedaço de linguiça frita… o tempero da infância, as festas com brigadeiro e coxinha meio tortas enroladas por mim com minha mãe.
Vejo a mesa das novenas, os encontros de fim de ano, os cafezinhos com pão, bolo e queijo em nossas casas mineiras, a ansiedade para o fim das reuniões de pais, de adultos, onde nós, crianças, aguardávamos o momento do lanche fraterno que agitava as cozinhas.
A comida guarda histórias. Ela é memória viva.

E essa é a força da cozinha: lugar de encontro, de sabor e alegria e de construir histórias.
E, também, espaço simbólico de liberdade, de fazer as coisas do nosso jeito e no nosso ritmo, do modo que aprendemos, com nosso toque único e especial. Porque o seu jeito carrega a sua história.
Seja respeitoso com sua forma de comer, de cozinhar, de organizar. Respeite o jeito do outro também: de comer, de cozinhar, de se expressar.
E seja curioso: tenha coragem de experimentar novos sabores. Conhecer a comida do outro é também conhecer o mundo do outro. É um modo de se conectar de verdade com outros costumes e outras culturas.
Em tempos tão digitais, que possamos nos conectar mais pelos sabores da vida. Pelos encontros à mesa. Pela simplicidade de um prato feito com afeto.
Que a cozinha volte a ser esse lugar de reencontros e de boa conversa, sempre que possível, mas que haja esforço para a vivência desse momento.
Que possamos resgatar a beleza da rotina. O valor do prato simples. A alegria de saborear.
Porque, no fundo, a vida é isso: uma sucessão de pequenos momentos. E muitos deles têm gosto de comida boa e presença de gente que a gente ama, acendendo e construindo memórias, continuando tradições e dando ao corpo não apenas bons alimentos, mas também afeto.
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Tô levando uns amigos pra conversar
Eles vão com uma fome que nem me contem
Eles vão com uma sede de anteontem
Salta cerveja estupidamente gelada prum batalhão
E vamos botar água no feijão
Não vá se afobar
Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar
Ponha os pratos no chão, e o chão tá posto
E prepare as linguiças pro tira-gosto
Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão
E vamos botar água no feijão
Muito obrigada pela presença e pela leitura!